Os comboios formam um imaginário que começa no pouca-terra, continua no devagar se vai ao longe e vai até ao popular apita o comboio.
Os comboios têm palavras de um campo lexical que, quando soam, lembram o passado, aqueles dias de gotas de chuva a escorrer no vidro embaciado da janela do quarto, enquanto reinventávamos o tempo sem a tecnologia dos dias de hoje e das redes sociais. De ouvir: apeadeiro, caminho de ferro, locomotiva, vagão, carruagem, descarrilamento, catenária, bitola, automotora. Palavras complexas, com consoantes a vapor e vogais a dois tempos, tempo de hoje e de ontem. São palavras que gosto e que sinto que ficam à mercê das nossas mãos quando a tecnologia, feita de palavras pixel, digital, inteligência, auto-gestão, plataforma, faz parte do nosso quotidiano.
As palavras comboio, eram palavras que usava com frequência quando andava sem telemóvel, quando o Inter-Regional Santa Apolónia – Coimbra-B chegava atrasado a todas as estações e apeadeiros. Circulava com as janelas abertas, por estarem encravadas ou por vontade própria e tantas vezes também as portas, onde ao domingo, no comboio da noite, se juntavam os militares fardados de regresso à base, a fumarem e a rirem-se do fim-de-semana uns dos outros.
Acabei por fazer muitos comboios porque morei muitos anos em Coimbra e vinha passar fins-de-semana a casa. Entretanto, não deixei de fazer comboios, pois ainda hoje são o meu cavalo de ferro na rotina do trabalho, o comboio Fertagus, gosto mais de dizer o Comboio da Ponte, apesar de no meu caso-carruagem não passar sobre o Tejo. Com tanto comboio e estação de comboio reconheço que ganhei uma capacidade elevada de reconhecer a sinalética das estações, o saber por onde ir, onde procurar a indicação da linha e como me mover enquanto passageiro numa estação de caminhos de ferro. E acabei por sentir que me deu jeito na travessia da China por comboio.
Os comboios na China não são os comboios do nosso imaginário. As palavras a dois tempos do passado ganharam asas e fazem circular milhares de comboios de alta-velocidade, tecnologicamente sofisticados e com vários serviços a bordo. A catenária continua ao serviço, mas o comboio é bala. Fomos daqui preparados, pois partimos com a intenção de fazer a China de comboio. Levámos logo à partida duas viagens compradas, mas fomos surpreendidos. É certo que tudo na China é grande, tem outra dimensão, é construído numa escala que para um europeu de Portugal transpõe sempre as medidas do humanamente praticável, do politicamente correto, do auto-sustentável. Mas a rede de comboios chineses de alta velocidade já é como que neuronal, com colossais estações ferroviárias que distribuem ordenadamente seiscentas pessoas por comboio que vai acabar por bater a linha a trezentos quilómetros horários. As palavras a dois tempos do Inter-Regional suam para poderem acompanhar em pensamento estes cavalos-a-luz que partem com intervalos mínimos de dez minutos de uma mesma estação e podem atravessar a China no mesmo sol. São aviões de linha férrea, com serviço prestado por comissários e hospedeiras de bordo, extremamente organizado no acesso à linha, à carruagem certa (pode chegar a ter quase meio quilómetro de comprimento em dezasseis carruagens), na descida à plataforma, no embarque e na pontual partida.
Mas nos sofisticados comboios da China, depois de ultrapassada a ansiedade do embarque que é sempre conflituoso devido quantidade de pessoas e bagagem, vive-se um ambiente humano e descontraído que contraria o efeito metálico e frio da tecnologia. As pessoas e crianças que circulam no corredor largo, as comidas, principalmente as comidas, onde a sopa de massa chinesa está sempre presente. Há uma torneira de água quente em cada carruagem, onde a maior parte dos passageiros vai carregar a sua garrafa de chá ou pôr a cozer a sua sopa de fitas.
Num contexto e forma completamente diferente, fez-me lembrar os tempos do Regional para a Figueira da Foz, para Aveiro, ou da automotora para a Lousã, em que o farnel embrulhado num pano de cozinha se abria no colo das mulheres e homens do campo que entravam nos apeadeiros dos arredores de Coimbra e dele nascia pão, queijo e vinho, alguma fruta também, que era sofregamente ingerida ao sabor da viagem. Na China também se desembrulham farnéis, já não é o pano, mas o plástico, com caixas onde se encontra uma variedade de petiscos, alguns ainda quentes, a fumegar, que deixam água na boca aos imprudentes que desconsideram levar consigo um lanche. E ficar com água na boca a 300 Km/h não é minimamente confortável.
Dois ou três conselhos mais duas ou três considerações para viajar de comboio na China:
- Adquirir o bilhete antecipadamente através de aplicações como China Train Booking ou a China Trains. O bilhete comprado terá de ser levantado nas bilheteiras das estações ou poderá ser entregue em dois dias úteis numa morada a consignar, o hotel. Ambas as opções funcionaram pontualmente na nossa experiência e considerámos que a taxa de serviço paga às aplicações (5-10€) valeu a pena.
- Pelo menos estar na estação uma hora antes da partida. O levantamento dos bilhetes, a verificação dos passaportes e a passagem pela porta de segurança pode ser demorada.
- Da aquisição à entrada no comboio documento de identificação sempre na mão e isto é válido para todos os passageiros, incluindo chineses.
- As crianças até 1,20 metros de altura podem estar isentas de pagar bilhete, mas têm de ir ao colo. Nós optámos sempre por comprar bilhete para o Duarte e neste caso paga-se 50% da tarifa normal.
- Os assentos de comboio na segunda classe são muito confortáveis e largos, diria uma business class de um avião em voo curto e estão providos de mesa, tomada elétrica e usb.
- Viajar de comboio é relativamente barato ao considerarmos o preço dos voos de avião, cerca de um terço mais barato, e ao contabilizarmos o preço do quilómetro efetuado.
- Conservar o bilhete até sair na estação de chegada pois vai ser necessário à saída.
- A maior ameaça são… as sopas quentes a circularem no corredor. A água sai a ferver da torneira que está em cada carruagem. Um perigo se houver ocorrer um desequilíbrio de quem a leva em mão até ao seu lugar e a sopa se entornar sobre o ou os passageiros sentados. Assistimos a um acidente que nos no vacinou. O Duarte veio sempre à janela.
- Andar de comboio é uma aventura e a sofisticação dos comboio bala não interfere.
- Trazer lanche ou ir ao café-restaurante buscar uma refeição. Para não ficar com água na boca e corrermos o risco de nos afogarmos a uma velocidade absurda.